domingo, 8 de março de 2020

não são novas gueixas

Bufando de ódio ela chama Nilda após tentar, por 22min, colar a porra da película em gel no meu celular. Antes, desperdiçou 3 delas, diga-se de passagem.

Eu pensava cá comigo: "Calma, menina, eu não tô com pressa...". Até saía um pouco de perto do balcão, achava que minha presença diante dela estava atrapalhando a sua concentração. Na verdade, o fato de eu estar ali era mais por curiosidade mesmo, pra saber como deveria ser aplicado aquele novo produto, se eu mesmo teria capacidade motora tanto quanto ela. Cheguei à conclusão que não.

Como disse Nilda assim que chegou pra me atender: "É que essa película em gel é complicada mesmo de aplicar. Ninguém gosta, preferem a de vidro. E acho que ela não tá muito bem hoje...", dando um sorrisinho meio de canto na boca. Daí começou o serviço com uma paciência de Jó. Limpou a tela, descolou o plástico, deslizou as espátulas, batalhava pra tirar as bolhas que insistiam em aparecer para, só então, depois aplicar a película de vez.

Foi quando me dei conta que a nova atendente era praticamente idêntica à que anteriormente me atendia irritada. Olhei para as demais, e pareciam cópias umas das outras. Exceto por Gabi, única negra, que se destacava entre todas por me parecer a mais simpática.

Como estava com tempo e o troço demorava mesmo, rapidamente fiz uma "análise psico-social" daquele ambiente de trabalho:  uma loja especializada em acessórios para celular, com uma equipe formada por mulheres de 18-20 anos, cujo ofício requer concentração e paciência. Um ambiente de trabalho um tanto quanto hostil e salários, ouso dizer, baixíssimos; com remuneração adicional por percentual de vendas.

A fim de evitar desperdícios e roubos (por parte dos clientes), atributos principais para quem ali trabalhasse deveriam ser atenção e resiliência. É óbvio, naquela situação, que a equipe só poderia ser formada por mulheres! Mas até que havia homens trabalhando ali: como Caixa e Gerente. Aquelas meninas-mulheres me pareciam Gueixas, que nas casas de chá eram treinadas para abaixar a cabeça, distrair a clientela, servir, serem discretas, pacientes e bonitas.

Lá pelas tantas chega mais uma pé 34. O que a diferenciava eram seus cabelos azul-esverdeados e a farda do IFRN, que logo seria trocada pela da loja, que trazia em mãos.

E isso me fez cair a ficha de que elas são cientes da realidade que vivem. Aquele empregozinho de merda é somente um degrau para algo muito maior que elas sonham e batalham diariamente. Mas esse degrau é, na verdade, uma pedra no caminho delas, que não existe para muitos homens somente pelo fato de serem homens. Em grande parte, eles se posicionam no mercado em empregos muito mais notórios e rentáveis bem mais facilmente ou rapidamente que elas.

Embora as mulheres tenham conseguido muitos direitos e os gozam merecidamente, ainda existe uma realidade bem pior - a parte escondida do iceberg - de que para isso, elas enfrentem diversas situações de injustiça, antiquadas e inadmissíveis, tanto quanto as suas manas orientais, antigamente.

Espero que sim, que aquelas mulheres da loja saibam que podem e merecem muito mais que aquele emprego chato pra caralho, apesar de digno. Que elas possam terminar seus cursos técnicos, que possam começar faculdades e fazer grandiosidades pra sociedade.

Fiquei curioso em saber como seria o cenário daquela loja caso todos os funcionários fossem homens. Aliás, será que a loja ainda existiria?

Findado o serviço, peguei meu celular de volta, olhei nos olhos dela e agradeci com uma verdade imensa que talvez ela nem tenha entendido.